A renúncia de Bento XVI: um precedente evangélico



15 fevereiro, 2013


Eram oito horas da manhã quando o telefone tocou.  Em pleno carnaval, descansando fora do Rio, eu dormia até mais tarde.  A voz vinha de longe e lentamente ativava as sinapses de meu cérebro.  Quando escutei “a renúncia do Papa de Bento XVI ao cargo”, o choque de adrenalina me fez acordar de vez. Pedi um tempo para me inteirar da situação.  E fui verificar.  Era verdade.

Em meio às plumas e paetês das escolas de samba a notícia da renúncia do Papa começou a ganhar volume e espaço.  E a assombrar a todos!  Nunca antes…jamais se viu…como pode ser…por quê?  Lembrei-me de outras ocasiões, quando minha mãe me avisou: “O Papa morreu”. E eu lhe disse que se enganava por pensar que se referia a Paulo VI.  E era João Paulo I, o Papa sorriso.  Ali também havia a surpresa e o sabor do inesperado.  Ali também experimentávamos perplexidade.

Bento XVI não morreu.  E isto faz toda a diferença.  Foi um papa lúcido e em plena posse de suas faculdades mentais que anunciou na Praça São Pedro sua decisão inabalável de renunciar ao cargo de bispo de Roma e de sucessor de Pedro.  Marcava data e prazo: 28 de fevereiro.  Agradecia a todos que o ajudaram em seus quase oito anos de papado, pedia perdão pelos erros e…entregava a Igreja nas mãos de seu Supremo e Único Pastor, Jesus Cristo, assim como ao cuidado maternal de sua mãe Maria.

Surpresa como todos diante do inesperado gesto de Bento XVI, aos poucos fui sentindo o peso e a importância desta decisão e deste anúncio.  Parece-me de uma grandeza impressionante, de uma coragem enorme e de uma inspiração evangélica.  Nunca durante este pontificado senti tão presentes o sopro e o impulso do Espírito como neste anúncio dado na Praça de São Pedro no último dia 12 de fevereiro.

A decisão livre e minuciosamente refletida e pensada de Bento XVI pode ter um enorme significado para a Igreja.  Porque se o Papa pode deixar seu cargo por motivos de idade, por sentir que lhe faltam as forças e o vigor físicos para exercer como deveria a posição que ocupa, a mesma interpelação se abre para outros segmentos eclesiais.  Por que não teriam que fazer o mesmo os superiores das ordens e congregações religiosas masculinas e femininas?  Por que se eternizariam em cargos de chefia tantos coordenadores de movimentos leigos que não se mostram dispostos a dar um passo para liberar o caminho aos mais jovens?

Antes do Papa, a Igreja havia já assistido à renúncia do superior geral dos jesuítas, o holandês Peter Hans Kolvenbach.  Depois de 25 anos à frente da Companhia de Jesus, a ordem mais forte da Igreja, o Pe. Kolvenbach apresentou sua renúncia.  Já vinha tentando fazê-lo desde o pontificado de João Paulo II, que nunca a aceitou.  No entanto, pôde depo-la nas mãos do Papa Ratzinger, que entendeu perfeitamente seu desejo e sua decisão.

O “Papa Negro”- como é chamado o geral dos jesuítas – ao renunciar prenunciava esta outra renúncia, a do Papa sucessor de Pedro. Em ambos a mesma atitude de fundo: liberdade interior e desapego do poder.  Sair porque vê conscientemente seus limites.  Afastar-se do cargo porque reconhece humildemente não ter condições objetivas de exercê-lo. Deixar o poder que lhe foi outorgado pelo colégio cardinalício e reconhecido por toda a Igreja nas mãos desse mesmo colégio para que escolha um sucessor para si mesmo. 

No dia 28 de fevereiro Bento XVI se retirará à sede de Castelgandolfo, no sul de Roma e deixará o governo após quase oito anos de papado.  Depois de eleito seu sucessor, viverá na cidade do Vaticano, dedicando-se àquilo que ama fazer: ao estudo, à escrita, à oração.

Com sua atitude nitidamente na contra mão da lógica do poder, Bento XVI abre o caminho a uma reformulação do papado que já deveria há muito ter sido feita na Igreja Católica.  Seu sucessor, seja ele quem for, encontrará esse precedente aberto na Igreja e isso certamente deverá impactar em seu comportamento, em seu estilo de governar e na compreensão que terá de seu cargo e ministério.

Com seu gesto extremamente humilde e realista, Bento XVI deixa a autoridade que lhe foi conferida como Papa, mas permanece investido de outra autoridade, mais evangélica, mais inspirada e inspiradora, mais perene: a autoridade do testemunho.  Foi um confessor – como os do cristianismo primevo -  aquele que, fragilizado pela idade e pelo cansaço, com a voz tênue e quase inaudível, reconheceu seus limites e abdicou do poder que detinha.  Assim entrava na esfera daquela humildade que deve ser mais forte e presente ainda nos que detêm cargos de mando, tal como ensinou o Mestre Jesus de Nazaré.

Se faltasse ainda algo para convencer-nos da beleza do acontecimento que ungiu a Igreja inteira com a renúncia do Papa, talvez fosse importante prestar atenção ao respeito atento e admirativo que esta despertou naqueles que mais divergiam de suas idéias e de seu magistério.  O teólogo brasileiro Leonardo Boff, por exemplo,  declarou que a atitude de Bento XVI merece toda admiração e respeito. Assim também o teólogo suíço Hans Küng, com quem Ratzinger teve alguns embates bem conhecidos: “A decisão de Bento XVI merece grande respeito, é legítima, compreensível e também corajosa. Nunca esperei que este Papa conseguisse me surpreender, algum dia, de maneira tão positiva”.

A nós que somos espectadores e testemunhas deste evento histórico-teologal, que a atitude do Papa nos inspire e ilumine nesta Quaresma que agora começamos.

 

Autor: Maria Clara Bingemer



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